Checkpoint é uma coluna quinzenal onde é debatido aspectos relevantes dos jogos, esta quinzena temos o jogo The Witness e toda a construção do surrealismo em sua essência.
Esta matéria da coluna Checkpoint apresentará spoilers do jogo. Conhecer os acontecimentos do jogo resulta em uma perda abissal da experiência ao jogar, o disclaimer está dado, fica a cargo do leitor decidir se deseja continuar ou não a leitura da matéria.
The Witness é um jogo com o qual tive contato diversas vezes antes de realmente zerar, por muitas vezes parei no meio do caminho porque simplesmente não entendia o que estava acontecendo. Quando terminei o jogo e compreendi o propósito de tudo, admito que esta deve ter sido uma das melhores experiências em um jogo que já tive.
O que é surrealismo
Para entender The Witness é preciso entender o que é surrealismo. O movimento surrealista é considerado um movimento de vanguarda que, junto com outros como fauvismo, futurismo, cubismo, dadaísmo, etc, “abriu” caminho para o século XX. Cada um dos movimentos tinha características únicas e todos eles tinham algo em comum, romper com as raízes do que estava posto até então. O surrealismo nasce com proposta de demonstrar através da arte a fantasia, o mundo onírico (sonhos), como o próprio nome diz o surreal, aquilo que vai além do real. O principal expoente desse movimento é Salvador Dalí com a famosa obra “A Persistência da Memória” de 1931.
The Witness é construído até os mínimos detalhes para ser surrealista
The Witness é surrealista por natureza, a obra é moldada neste sentido desde o momento inicial. É muito provável que nenhum jogador perceba que está dentro de um ambiente surrealista até o fim. Porém, com um olhar atento é possível perceber os indícios, o jogo se inicia em um corredor escuro, avançando um pouco o jogador percebe que está em um ambiente fechado, uma ilha, neste lugar é preciso resolver diferentes puzzles para conseguir desbloquear a saída, esta é a proposta base.
Os puzzles são bem pensados, cada um envolve-se diretamente com o bioma específico da parte da ilha, alguns deles dependem da posição do sol, outros das formações das rochas, outros da estrutura de galhos de uma árvore, e alguns até de mecânicas mais básicas como separar cores e dividir objetos em grupos. As mecânicas são diversas e quase todas se comunicam com o ambiente em específico.
Sobre os ambientes, a concepção destes é incrível, cada um deles é bem específico, como a floresta, o deserto, a parte montanhosa, o labirinto no castelo quebrado, a vila abandonada, o estaleiro, etc. Os ambientes recompensam após sua conclusão com um sinalizador que aponta para a montanha no centro da ilha, com todos os sinalizadores ativados, o caminho para o final do jogo se apresenta e o segredo é desvendado.
Inclusive esta é uma das sensações que a obra mais oferece ao seus jogadores, a ideia de que tudo ali é um mistério que precisa ser desvendado, por isso todos os elementos presentes no jogo são, geralmente, categorizados pelos jogadores como pistas de algo maior. Esta dinâmica causa muita confusão na mente de quem experimenta, pois não é possível realmente realizar conjecturas desta ilha recheada de quebra cabeças. A situação piora caso o jogador encontre a Sala de Av, onde é possível assistir determinados curtas metragens que parecem sem sentido.
Outro ponto fundamental na proposta de Jonathan Blow é a visão em primeira pessoa do personagem misterioso. Em nenhum momento é possível conhecer o homem que estamos controlando, não há espelhos na ilha, não há reflexo na água, a coisa mais próxima de sua identidade é a silhueta do homem quando em contraposição ao sol. Há um distanciamento que faz sentido na proposta surrealista, mas que em um primeiro momento parece loucura.
As dinâmicas de dúvidas e detalhes vão se somando até atingir o ápice que é o final da obra. Neste momento, é possível ouvir pela primeira vez a voz do personagem principal e sua última palavra revela o plot, estávamos o tempo todo dentro de um sonho. Neste momento o jogo acaba e tudo faz sentido.
Vivenciado o sonho
Por que eu preciso observar o meu personagem se ele sou eu? porque os vídeos na sala de AV precisam fazer sentido se eles são resquícios da minha memória? Pessoas petrificadas, laboratórios subterrâneos, construções abandonadas, tudo faz sentido se considerarmos que estamos no território dos sonhos. Jonathan Blow, o idealizador do jogo, é fenomenal ao trazer diferentes detalhes do subconsciente e ordená-los para não fazerem sentido propositalmente, a falta de sentido e aleatoriedade é programada para se parecer um sonho. A desorganização está organizada.
Fora isso há detalhes importantíssimos que agregaram ainda mais na experiência que só são percebidos quando o jogo é finalizado. Quando The Witness é iniciado pela primeira vez, não há menu com botões de começar o jogo, continuar e configurações, o jogador é colocado diretamente no corredor escuro. Quando o jogo é aberto novamente o jogador volta exatamente no ponto onde parou, não há opção de resetar o progresso. E o mais incrível, quando o jogo é finalizado e o plot é revelado, não há créditos ou algo do tipo, o jogo fecha instantaneamente e o jogador se encontra na sua área de trabalho, como uma pessoa que acabou de despertar de um sono. Isto é incrível, todos os detalhes são pensados para inserir o jogador em um ambiente surrealista.
O surrealismo surge nas artes plásticas e literárias. Ele também ganha espaço no cinema e em outras artes, mas, talvez, os jogos sejam o ambiente onde este gênero pode ser melhor explorado. A dinamicidade de interação torna a experiência de um jogo surrealista para além do incrível. Posicionar o consumidor da obra como alguém que está dentro de algo que ela nem mesmo entende por completo talvez seja o que mais se aproxima do surrealismo e sua proposta de fantasia onírica.
The Witness, sem sombra de dúvidas, deveria estar na categoria Must Play para qualquer jogador que considere jogos uma categoria artística.
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