Deathbound é o primeiro jogo da Trialforge Studio, um estúdio de desenvolvimento de jogos brasileiro. A obra propõe um soulslike ambientado em uma cidade moderna que forçadamente regressou a um período medieval. A problemática que leva à regressão é o embate entre deusas irmãs, Vida e Morte, que reflete no embate entre os homens que se dividem em duas facções opostas: a igreja da morte e o culto à vida.
Ao propor um soulslike a Trialforge aponta o combate como foco principal da obra e neste é dado um empenho considerável por parte dos desenvolvedores. Isto também ocorre com a adição de uma mecânica diferenciada que não existia neste estilo de jogo, o personagem baseado em time de quatro. Felizmente, a obra não abre mão de contar uma história intrigante com seus 7 protagonistas que são usados como importantes peças em organizações que cultuam as duas deusas. O jogo possui uma duração ideal que permite o jogador explorar o combate e vivenciar a história sem ficar entediado com nenhum dos dois.
Em relação à história, Deathbound apresenta a disputa entre duas deusas irmãs, a Vida e a Morte. A Vida deseja criar vida, logo ele engana sua irmã para criar os seres humanos, a Morte acreditava que estas vidas criadas um dia chegariam aos seus braços com o devido fim. Porém, a Vida amava demais suas criações para deixá-las ir, assim concedeu aos humanos a imortalidade. Com a devida organização e artimanhas a Morte conseguiu tirar esta dádivas dos homens trazendo o fim para a sua existência. Assim começou o conflito eterno entre os dois grupos.
A relação das facções na atualidade é péssima e o combate entre elas é inevitável. Este combate ocorre devido à cisão entre objetivos e crenças, a igreja da morte admira a morte como ponto máximo da vida, onde será possível reencontrar com sua deusa e por isso luta para que a ordem do mundo permaneça assim. O culto à vida deseja retomar a graça da imortalidade por quaisquer meios disponíveis. Os ideais de cada facção corromperam suas atitudes para algo nefasto; a igreja da morte, para manter o status quo e seguir a ordem de sua deusa, se tornou extremamente autoritária e corrupta. Já o culto à vida com a premissa de retornar à graça da imortalidade começou a realizar experimentos em humanos para alcançar o sonho longínquo.
Estes ideais turbulentos que levaram as facções a atitudes deploráveis são o que regem uma característica importante da obra: a dificuldade de escolher um lado do conflito. É de praxe observar o nome Igreja da morte e o culto à vida e logo escolher o mocinho e o vilão, porém, conforme é aprofundada a história este possível maniqueísmo evidente é retorcido pelas atitudes das personagens. Não é possível ver algum lado como bom e como mal, ambos possuem causas justas para basearem sua luta mas tomam atitudes deploráveis para isso. Até a estética confunde esta divisão, os fieis da igreja da morte possuem roupas brancas enquanto os seguidores do culto à vida possuem roupas de tom mais escuro. São apresentados diversos pontos positivos e negativos de ambos os lados, e muitas vezes parece que nenhum deles está certo no que faz. Isto mostra inclusive a excelente construção de mundo da obra, pois ela consegue criar algo vivo, dinâmico e contraditório, assim como o mundo real.
Nesta perspectiva tem-se a apresentação dos dois vilões de Deathbound, Soulon o cientista chefe que trabalha para a organização ligada ao culto à vida e posteriormente é apresentado o Arqui-duque Pöbel, um nobre de um reino ligado à igreja da morte. Ambos desejam utilizar os personagens principais ao seu favor na busca por poder. Os personagens principais também se dividem a partir das duas facções e interação com os respectivos vilões. Cinco dos sete pertencem à igreja da morte, sendo eles: Therone, Iulia, Agharos, Mamdile e Olivia, e os outros dois pertencem ao culto à vida, sendo eles: Haodai e Anna. Não é necessariamente correto fazer esta divisão pois há personagens como Iulia e Mamdile que, apesar de pertencerem a um dos grupos, possuem uma forte relação com o outro.
No que diz respeito aos personagens, esta dinâmica de facções torna a ideia de todos dividirem o mesmo corpo algo inusitado. Há diferenças étnicas, éticas, convicções e temperamentos. A união é alvoroçada e contraditória, assim como a história. O ponto comum entre eles é que todos foram mortos e que seus corpos foram absorvidos por uma essência principal. Mecanicamente, a união fornece o aspecto de sinergia, onde é possível ganhar bônus ou penalidades dependendo de qual dos quatro personagens foram selecionados para o combate. Ainda há um lastro na construção da build já que para se ter três bônus e uma penalidade, o que é o ideal, somente sete combinações de personagens são possíveis.
A jogabilidade da união dos sete personagens criou uma dinâmica interessante para um soulslike. O jogador joga com um time de quatro personagens simultâneos, sendo possível trocar entre eles de diferentes formas, esta mecânica é conhecida como Morphling. É possível trocar entre eles de forma neutra, apenas apertando um dos botões correspondentes a um dos personagens. Esta transformação é lenta e abre muitas brechas no combate. Outra forma é através do Morphstrike, que funciona no momento de realizar o ataque, onde ao possuir energia suficiente na barra de Sync um ataque especial é realizado com o novo personagem selecionado, assim automaticamente trocando o atual. A última forma ocorre durante a esquiva perfeita, onde o tempo desacelera por alguns instantes e é possível realizar a troca rapidamente entre os personagens. O ponto crucial da necessidade da existência desta mecânica é o fato de a vida entre os personagens ser compartilhada, caso um deles morra todos morrem, logo, trocar entre eles é necessário para que o heroi inativo possa ser curado.
Assim, a mecânica de Morphling é a principal mecânica do combate e tudo gira em torno dela e dos personagens selecionados. Isto ocorre pois as ações dos personagens são diferentes para cada um deles, há personagens magos, outros que conseguem bloquear, uma assassina que possui um crossbow e até um capoeirista. Logo, a escolha dos quatro personagens propõe uma dinâmica única de combate. Junto à mecânica de Morphling e sinergia, há os talentos dos personagens que causam mudanças substanciais, como um dos perks de Iulia que permite à lanceira aplicar sangramento em cada ataque.
Outro elemento bem pensado é a árvore de habilidades que possui atributos comuns a todos os personagens. Mesmo que o jogador evolua os pontos de um personagem em específico, todos os outros também receberão este bônus, afinal todos eles compartilham o mesmo corpo. Isto é excelente no game design pois permite ao jogador gastar pontos em um personagem que talvez não seja utilizado mais para frente e mesmo assim isso valerá a pena, já que os outros personagens também serão beneficiados independentemente.
Ao falar de um soulslike é preciso discutir ainda aspectos básicos da jogabilidade. A jogabilidade geral de Deathbound segue o caminho bem parecido com a maioria dos souls. O jogo é uma obra de modo campanha linear. O jogador deve avançar até determinados checkpoints para realmente avançar nos mapas. Ao matar monstros xp é obtida assim como diversos consumíveis, a xp serve para evoluir a árvore de habilidades que funciona com a mecânica de compra de habilidades a partir de uma certa quantidade de xp, quanto mais alto for nível, mais xp será necessária. Os mapas são bem desenvolvidos, e por vezes verticalizados, diversas vezes o “novo” checkpoint é o checkpoint anterior agora sendo possível acessar a partir de outro lugar. Enfim, o modelo base de um soulslike é seguido, o que torna a base da obra bastante sólida para a construção do seu diferencial no combate. Deathbound não tenta reconstruir completamente o gênero, apenas propõe características únicas para aquilo que já funciona, isto merece reconhecimento já que há uma linha tênue entre a inovação e a mesmice ao propor este tipo de abordagem.
Ainda é preciso falar sobre a dificuldade que é um ponto de grande discussão para os jogos do gênero. Deathbound possui uma dificuldade equilibrada no mapa com seus diversos inimigos com características diversificadas. Os chefes por muitas vezes deixam a desejar, o desafio é maior do que os monstros normais porém não é realmente difícil, é raro o jogador repetir o mesmo chefe mais de dez vezes sem conseguir derrotá-lo. A exceção é o chefe Eithalos que definitivamente é o chefe mais difícil do jogo, mais difícil que o último chefe, inclusive. Eithalos possui uma mecânica única no seu combate que exige uma habilidade grande para derrotá-lo, é possível morrer mais 20 ou 30 vezes para o chefe antes de efetivamente derrotá-lo. Talvez este seja um problema para o jogo, falta equilíbrio em alguns combates, é preciso desafios maiores em alguns momentos e facilitar em alguns outros. Felizmente, isto parece ser relativamente fácil de ser ajustado.
Deathbound acerta em fazer um jogo com características brasileiras mas que não apela excessivamente à nacionalidade. É possível aproveitar o jogo sem ter nenhum conhecimento sobre a cultura brasileira, porém para quem conhece há detalhes importantes sobre a cultura tupiniquim. A de maior destaque é o personagem Mamdile, um negro capoeirista que está entre os protagonistas (inclusive sendo muito forte), outro destaque fica para um personagem importante em todo o contexto da história, Nito, o primeiro homem a morrer, fica claro com os troféus e outras características que Nito Hidetaka era um jogador de futebol (ou pelo menos um esporte parecido com futebol). Estes detalhes trazem uma brasilidade sem apelar para algo exacerbado que evite o consumo internacional, um acerto fantástico da Trialforge.
A ambientação da obra é incrível, a estética de uma modernidade abandonada é sobreposta a um passado emergente perante à tecnologia degradada. Com isso é possível ver tochas e barricadas de madeiras dentro de prédios comerciais, carros abandonados cobertos de musgo sendo completamente descartados. A tecnologia muito mais avançada do que o novo atual está ali exposta, só não há conhecimento disponível para acessá-la, isto evoca novamente característica de um período medieval deslocado. O surpreendente são os detalhes sobre a tecnologia remanescente do período moderno que ainda funciona e se mescla com o novo cenário antigo, como um detector de metal que apita após um cavaleiro armadurado passar por ele, ou diversos elevadores que ainda funcionam sem terem a manutenção adequada. Ainda há a característica de um estilo rústico dos personagens com diversas arestas à mostra que fornecem uma perspectiva de indie game, algo crucial para a primeira obra de um estúdio ainda pequeno.
Concluindo, Deathbound é um excelente soulslike. A base do jogo segue o que já funcionou no passado ao mesmo tempo que introduz mecânicas novas que são muito bem-vindas para dar novos ares ao gênero. Outro ponto crucial é a excelente construção do mundo, aliado a personagens bem desenvolvidos em um cenário incrível e intrigante. Ainda há a incrível história que aponta duas facções opostas e contraditórias em seus atos e convicções, este maniquepismo conturbado torna o peso da decisão do jogador no momento crucial da história extremamente confuso e reflexivo, é possível ficar minutos para decidir a qual lado se aliar. Há problemas em relação a dificuldade em alguns chefes, mas que podem ser facilmente resolvidos. É incrível poder presenciar em primeira mão o surgimento de um dos maiores jogos brasileiros de todos os tempos, Deathbound não deixa a desejar em nada a nenhum gigante do mercado internacional de jogos.
Ficou interessado em adquirir Deathbound, acesse o site oficial da Trialforge clicando aqui. Para ficar por dentro de notícias da semana do mundo dos jogos fique atento à BlackCompany em Games.
Uma resposta
Gostei da lore e tá bonitão, excelente Review