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Indika e as freias ao seu redor

Indika: uma dualidade entre distúrbio e possessão

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Indika, segundo título da Odd Meter, estúdio de desenvolvimento de jogos russo que buscou realizar uma obra que rompesse com paradigmas de vários jogos modernos ao tempo que pretende discutir elementos da teodiceia(justiça divina). Com isto, várias questões são levantadas, debatidas e quase nenhuma delas recebe uma conclusão, o diálogo entre jogador e obra é aberto e recorrente.

A obra propõe uma história conduzida a partir de puzzles. Os puzzles são elementos constituintes que funcionam para movimentar o jogo, o objetivo dele não é desafiar o jogador mas propor uma interação entre jogador e obra para que a história não fosse contada diretamente sem nenhuma intervenção por parte do jogador. O foco é a história e isto está claro desde o começo do jogo, qualquer outro elemento mecânico ou de jogabilidade é complementar, essa proposta é tão clara que muitas mecânicas são satirizadas pelos próprios desenvolvedores.

A história da obra consiste em contar a vida de Indika, uma freira odiada por todas as suas irmãs de convento em uma Rússia distópica no final do século XIX. Indika, uma freira novata acredita ser atormentada por demônios e após certos acontecimentos recebe a missão de levar uma carta até o padre de uma certa igreja que fica longe do convento onde vive. O percurso a faz encontrar Ilya, um prisioneiro fugitivo que consegue escapar a partir do acidente de um trem que transportava diversos prisioneiros, este homem jura ouvir a voz de Deus e acredita que este pode o salvar, ele só precisa chegar na sua terra natal e tomar o remédio milagroso da igreja local. O processo da viagem traz diversas questões do passado e presente de Indika, ela precisa superar ambos e alcançar a cura para a sua possessão, ela precisa da salvação.

A vida de Indika é um turbilhão de contradições que se agravam com decisões específicas tomadas pela garota, várias delas decididas em uma tenra idade. Estas decisões culminam com sua ida para o convento e a suposta possessão que assola a menina. A possessão em vários momentos apresenta-se quase como uma esquizofrenia vivenciada no mais alto nível, com alterações drásticas da realidade, isto fica mais evidente com os diferentes diálogos com o demônio/narrador/voz interior. É ele que demonstra os desejos mais íntimos da garota, seus questionamentos para com a fé e seus arrependimentos, o demônio muitas vezes se confunde com a própria consciência da menina. É possível interpretar esse demônio de diferentes formas, sua própria existência pode ser posta em dúvida, mas invariavelmente a dinâmica deste como narrador e presença presente nas discussões funciona para aprofundar o jogador no consciente e inconsciente da protagonista.

Ainda sobre a figura do demônio ele é de extrema importância para a obra, é a partir dele que várias discussões são levantadas. O demônio começa a possuir a garota depois de a jovem Indika pecar contra a castidade e ser diretamente responsável pela morte de um homem. Este demônio que muitas vezes funciona como a consciência da protagonista mostra as fraquezas e as dúvidas perante a fé da garota, em uma Rússia com um catolicismo ortodoxo este seria um dos maiores pecados, duvidar. Os questionamentos são variados, entre eles é questionado o livre arbítrio com a presença de um Deus onipresente, onisciente e onipotente, também é levantado a questão do pecado de acreditar, afinal se uma pessoa não crê em algo, ela mentir que crê ou forçar uma crença não seria também o pecado da mentira?. Estas e outras questões são levantadas e todas fazem parte da teodiceia, teo significa Deus e diceia significa justiça, logo a obra trata sobre a justiça divina, que pode ser entendida como a racionalização dos acontecimentos ao considerar Deus como ser transcendente e poderoso que permite o pecado, sofrimento e degradação. 

Está presente uma dualidade na obra entre o embate da personagem de Indika e Ilya, a garota que pecou e agora é assolada pelo demônio e o homem fugitivo que tem um braço necrosado acredita ouvir a voz de Deus. Acontecimentos levam os dois a viajarem juntos até a cidade natal de Ilya, Indika no meio do percurso para encontrar o padre descobre a verdade sobre sua visita e decide tentar um último recurso para se livrar do demônio que vive nela, a única solução a vista é Kudet, o remédio milagroso da igreja da cidade natal de Ilya que promete curar qualquer enfermidade. A viagem aponta uma dualidade interessante, Indika, uma freira está com a fé perdida, não acredita e nada e tem desejos pecaminosos, por outro lado Ilya, o fugitivo, acredita fielmente que poderá ser curado e sonha com uma realidade e futuro onde poderá ter uma vida diferente, o embate entre esperança e desesperação, fé e abandono é constante na obra. Em determinado momento durante a conversa entre ambos, Ilya conta como é a vida na prisão e Indika fala como é a vida no convento, acaba que ambos comparam e acreditam que a vida nos lugares são parecidos.

O desenvolvimento da história revela a busca incessante da garota pela salvação. Ela acredita que todos os pecados realizados até o momento a condenam para o inferno, a sua última tentativa é o remédio milagroso, para alcançar essa graça ela comete outros tantos erros e pecados para enfim se deparar com o Kudet, entre os diversos erros está a morte de um padre e a comercialização de seu corpo. A última tentativa de salvação traz um arco na obra mais pessoal do que todos os outros, uma relação e debate íntimo com o demônio interior, uma suposta aceitação dos pecados e o fio de esperança está no receptáculo santo. A não resolução de seus problemas a decepciona e todo o peso da condenação, dos crimes, pecados são recebidos em um só momento, o que culmina na perda de sua frágil fé, a aceitação do inferno certo e o fim da obra.

A obra definitivamente brinca com elementos de sua jogabilidade. A presença dos elementos de pontos e níveis é satirizado em diversos momentos pelos desenvolvedores, ainda mais ao final da obra com seus acontecimentos finais. A sátira é pertinente inclusive para outras obras que adicionam elementos desnecessários que tiram o foco real do que precisa ser feito. É recorrente  no jogo a mensagem “não ligue para os pontos e níveis, eles não servem para nada”, “não perca tempo explorando em busca de pontos, siga em frente”, este tipo de abordagem tem uma função expressiva na personagem de Indika, já que a maioria dos pontos são obtidos ao achar algum item religioso ou acender a vela para uma imagem de Cristo, falar que isso é irrelevante mostra a indiferença de fé da personagem principal, que apesar de realizar o ato, pouco a impacta, até porque o nível e pontos carregam a ideia de experiência consigo, algo que ela realmente não possui.

Há sempre uma dúvida de como Indika foi para o convento, a resposta é dada a partir de mini jogos em pixel art no meio da obra 3D, estes momentos sempre são referentes ao passado e funcionam em trechos. Estes possuem uma duração curta e contam fragmentos necessários da vida protagonista somente para que o jogador fique ciente do motivo da ida de Indika para o convento, pecados como a perda da castidade e o sangue de um homem em suas mãos são os principais motivos para que isso ocorresse. Este elemento de jogabilidade é interessante pois ele sempre é posto em momento de alta tensão da obra, acontecimentos intensos são aliviados com um mini game de pixel art que destoa do resto da obra e aliviam a tensão presente, e como já dito antes, eles ainda contam partes do passado que são importantes para entender o presente.

Outra característica que vale a pena ser citada é caracterização de uma Rússia distópica em um cenário steampunk, máquinas gigantescas e elaboradas movidas a carvão passando a ideia de uma grande indústria moderna mas com o pé na antiguidade. Esta caracterização não permanece somente no campo da estética, o jogador interage com diferentes máquinas deste estilo durante os puzzles, como a bicicleta que a garota pedala junto a Ilya, a empilhadeira de latas de peixe e o gancho para levantar as estruturas.

Ainda há alguns easter eggs elaborados por parte dos desenvolvedores, como a Indika negando conhecer Mirko três vezes antes do fatídico fim, uma comparação a Pedro negando Jesus 3 vezes. A garota também acende velas para figuras de Cristo em troca de pontos durante todo o jogo, na última parte da obra ela acende uma vela em frente a figura de Karl Marx, uma demonstração do pensamento político socialista que começa a engendrar na Rússia que culminaria na revolução de 1918. 

Concluindo, Indika é um jogo incrível, a obra mantém um aspecto dualista a todo momento. Dualista no sentido de o jogador nunca ter certeza do que realmente está acontecendo, pois talvez a garota não esteja possuída por um demônio, talvez ela somente seja uma esquizofrênica, toda a análise feita considerando Indika um menina possuída também pode ser realizada considerando uma garota jovem que cometeu erros e tem um distúrbio. A dualidade que o demônio debate com a garota sobre o frio e o quente, a luz e sombra, Deus e Diabo também pode ser transferido para o debate entre a esquizofrenia e possessão. Fato é que independente da situação da garota o final é impossível de ser alterado, seja demônio ou uma condição, fato é que não há salvação para Indika. Essa certeza tão contundente abala o jogador e marca, invariavelmente, a obra como relevante na memória de qualquer um que a experiencie.

Indika é desenvolvido pela Odd MEter, para saber onde está disponível o jogo ou comprar produtos da obra basta acessar o site deles clicando aqui. Para ficar por dentro de notícias do mundo dos jogos fique atento à BlackCompany em Games.

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Luunyn

Luunyn

Escrevo sobre jogos e mangás e também costumo criar alguns jogos. RPG uma vez por semana faz parte da rotina. Se eu tivesse um poder, gostaria de desacelerar o tempo para jogar todos os jogos do mundo. PS: esse mendigo em pixel art no perfil fui eu desenhando a mim mesmo.

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