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Luminária: Anne de Green Gables é um romance feminino, mas é feminista?

Estou lendo a série de livros Anne de Green Gables, escritos pela canadense Lucy Maud Montgomery, e confesso que sou apaixonada por essa história. Os livros têm como público-alvo as mulheres e é uma narrativa com características de romance de formação. Porém o que me incomodou um pouco durante o hype foi a tentativa de categorizá-lo como uma história feminista… O que, acredito, que não seja bem assim.

Mas antes que queimem os sutiãs, que me julguem de traidora da causa ou que estou totalmente equivocada, irei explanar meu ponto de vista. Por isso, pegue seu chá de camomila, sente-se numa cadeira de balanço, acenda a Luminária e vamos conversar sobre a temática feminina e/ou feminista na obra Anne de Green Gables.

O hype e a decepção

Apesar de estar em domínio público desde 2012, foi apenas em 2017 que os leitores brasileiros conheceram a história de Anne de Green Gables graças a adaptação para série de TV da Netflix, intitulada “Anne With An E”. Com isso, as editoras correram para as gráficas e publicaram dezenas de versões desta narrativa, a que eu li foi a edição da Ciranda Cultural.

Lembro-me que na época muitas amigas e conhecidas, além de conteúdos nas redes sociais, elogiavam bastante a adaptação audiovisual e que ficaram tristes quando o streaming anunciou o cancelamento do projeto após a exibição da 3ª temporada. Como de costume, eu prefiro ler a obra original primeiro para depois assistir à adaptação.

Eu fiquei encantada com a leitura, li o primeiro e o segundo livro na época e, empolgada, fui assistir a série e… Bem, eu entendo que adaptações podem tomar certas liberdades de roteiro, pois são obras baseadas em outra e não requerem fidelidade 100% a história original, mas me incomodou o alto teor da pauta feminista nos episódios da série, algo pouco encontrado nos livros, o que me fez entender a desistência de muitos que assistiram a série e se decepcionarem depois com a obra literária.

O projeto de “Anne With An E” vendeu a ideia de uma história de época com forte teor na luta das mulheres pela igualdade. Os telespectadores que buscaram no texto aquilo que viram no audiovisual, frustraram-se ao ler uma simples história sobre as peripécias de uma garotinha ao longo de vários capítulos. O que muitos não entenderam é que a autora não criou a história para ser um romance feminista, mas um romance de formação feminino.

“- Eu pedi desculpas muito bem, não foi? – disse ela com orgulho à medida que desciam a estrada. – Pensei que, como eu tinha mesmo de fazer isso, era melhor fazer de modo minucioso.“, Anne de Green Gabbles, Lucy Maud Montgomery, pag. 87, Ed. Ciranda Cultural.

Romance de formação

Também conhecido como bildungsroman, o romance de formação surgiu na Alemanha do século XVIII e pode ser definido como uma narrativa a respeito do início e da trajetória de um personagem até alcançar o seu auge, com o intuito de promover a formação do leitor sob uma perspectiva pedagógica, de acordo com a docente em literatura alemã Wilma Patrícia Maas, em 2000 (Soares e Vasconcelos, 2023).

Posso citar como exemplo de romances de formação a obra “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, de Johann Wolfgang von Goethe, considerado o primeiro neste gênero. Outros também se enquadram nesta categoria, como “David Copperfield” de Charles Dickens, “Memórias Sentimentais de João Miramar” de Oswald de Andrade e “A Montanha Mágica” de Thomas Mann.

Por outro lado, também posso citar os romances de formação com personagens femininos, voltados para moças. É o caso de “Pollyanna” de Eleanor Potter, “Mulherzinhas” de Louisa May Alcott e “Anne de Green Gables” de Lucy Maud Montgomery. Tais livros foram desenvolvidos para o “aprendizado do lar”, focando no casamento e na maternidade. Soares e Vasconcelos, quando abordam tal assunto, citam “[…] Enquanto o herói do bildungsroman passa por um processo durante o qual se educa, descobre uma vocação e uma filosofia de vida e as realiza, a protagonista feminina que tentasse o mesmo caminho tornava-se uma ameaça ao status quo […] (PINTO, 1990)”.

Ao ler “Anne de Green Gables”, o leitor depara-se com uma menina de 11 anos sendo adotada por engano. Ao mesmo tempo que recebe uma educação rigorosa e conservadora dos Cuthbert, Anne Shirley também traz vitalidade e confusões na vida deles. O mundo narrado por Montgomery é mostrado sob a ótica da garota, um ingênuo olhar para um belo ambiente rural do Canadá, valorizando as belas paisagens da vila. Os locais são batizados pela garota como “Trilha das Bétulas” ou “Floresta Assombrada”, as novas amizades giram em torno do seu alto poder imaginativo e seu talento para confusões, sem maldades intencionais apesar do seu passado sofrido. Cada capítulo, normalmente, é uma história independente, ligando-se ao cotidiano de Anne.

“- Este é o lago dos Barry – disse Matthew.

” –Ah, tampouco gosto desse nome. Vou chamá-lo… Deixe-me ver… De Lago das Águas Cintilantes. […]“, Anne de Green Gabbles, Lucy Maud Montgomery, pag. 27, Ed. Ciranda Cultural.

Os demais livros da série acompanharão a protagonista ao longo de sua vida, na juventude e na adultez, em sua formação e amadurecimento, em seus novos amigos e perdas de entes, em sua busca pelo príncipe encantado e a esperança de um lar… Sim, estamos lidando com uma menina romântica, que idealiza o amor em um homem e na construção de uma família.

E talvez seja por isso que muitos se frustraram ao ler a obra, mal finalizando o 1º volume. Por exemplo, não há uma sociedade de mães feministas na qual Marilla Cuthbert passa a participar após a adoção de Anne, pelo contrário, ela é uma personagem que institui uma educação rígida e tradicional. As outras mulheres da vila não diferem muito, as mães querem seus filhos com bons casamentos. Não sejamos ingênuos ou anacrônicos, estamos falando de uma realidade do início do século XX, as mulheres estavam começando a luta pela igualdade e o bom casamento ainda era a opção sobressalente.

Não há pauta feminista?

Seria injustiça de minha parte não expor que há elementos feministas na obra principal de Montgomery. A jovem Anne Shirley demonstra altivez e iniciativa em suas atitudes, torna-se uma excelente aluna, consegue bolsas de estudo e forma-se como professora, passando a lecionar na escola de Avonlea (Anne de Avonlea, vol. 2). Apesar de tal realidade ser mais comum às mulheres na época, vemos o contraste com os outros colegas dela que muitos não continuaram seus estudos, incluindo sua amiga Dianna, que foi proibida pelos pais devido ao pensamento de que moças não precisam de estudo e sim de um casamento e um lar.

Com o salário de professora, a protagonista passa a ajudar no sustento do lar após a perda de Matthew Cuthbert, o homem da casa e o responsável por fazer de Green Gables produtiva para suprir as necessidades. O leitor mais atento percebe aqui a força do trabalho feminino frente às adversidades. Já no 3º livro, acompanha-se Anne rompendo com as críticas e indo à universidade, a busca pelo nível superior por mulheres era uma realidade que poucas buscavam e não muito aprovada pela sociedade da época, mas que era o sonho da moça a qual teve ajuda de Marilla para isso. Apesar disso, o foco deste volume não é o crescimento profissional da jovem, mas sim as primeiras paixões dela e de seus amigos.

” […] – Fico feliz em ir para Redmond (College) […] Mas sei que as primeiras semanas serão difíceis. Não terei nem mesmo o consolo de ir para casa aos fins de semana, como quando fui à Queens’s. […]

” – Tudo está mudando ou vai mudar – disse Dianna com tristeza. – Sinto que nada será como antes […]”, Anne da Ilha, Lucy Maud Montgomery, pag. 11, Ed. Ciranda Cultural.

Dizer que a autora possuía ideais feministas está além do meu alcance afirmar, pois não sou nenhuma especialista em sua biografia ou em seus escritos. O que posso dizer é que na época em que estava lançando os livros da série (1908 a 1939), estava acontecendo a primeira onda de movimentos feministas no mundo, em prol da igualdade dos direitos contratuais e de propriedade e no sufrágio feminino.

No Canadá, neste período, as mulheres voltadas para a vida religiosa ainda lutavam pelo direito de serem missionárias, organizaram-se em grupos que arrecadavam dinheiro para apoiar missões religiosas no exterior e na educação teológica, o que também é comentado em alguns momentos nos volumes da série, mas não como uma realidade central da vida de Anne.

A senhora Rachel Lynde […] comandava o Círculo de Costura, ajudava a administrar a catequese era o pilar mais forte da Sociedade de Caridade e de Assistência a Missões Internacionais da Igreja[…]“, Anne de Green Gabbles, Lucy Maud Montgomery, pag. 7-8, Ed. Ciranda Cultural.

Um romance feminino, mas não tão feminista

Com isso, posso afirmar que a saga de Anne Shirley foca muito mais em descrever o seu cotidiano, suas aventuras e confusões, suas escolhas e seu amadurecimento ao longo de sua vida, do que abordar abertamente o tema do movimento do feminismo. A série da Netflix usa como estratégia de adaptação de uma história de época para o audiovisual a pauta dos direitos igualitários por estar altamente em voga no nosso momento atual. A série não é uma adaptação ruim, porém possui liberdades adaptativas no roteiro com uso de assuntos mais contemporâneos.

Para mim, o livro não tem a intenção de ser uma história feminista, apesar de possuir alguns elementos que possam caracterizá-lo assim. “Anne de Green Gables” propõe-se em ser um romance de formação feminino, abordando a trajetória da protagonista em sua infância, juventude e vida adulta, explorando a temática dos estudos, do trabalho, do luto, do casamento e da família. E se está em busca de uma adaptação mais fiel ao tom encontrado nos livros, recomendo o anime “Anne Shirley” de 2025.

Luminária é a coluna literária na qual conversaremos sobre livros a cada quinze dias. Para mais conteúdos literários, acesse o portal.

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