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Luminária: O uso dos livros como performance estética

Já julgou alguém por acreditar que ela não está lendo de verdade? Você não é o único. O uso das redes sociais para promover a leitura é um grande incentivador da atividade, porém alguns usuários focam muito mais em mostrar que (talvez) tenham o hábito de ler ao invés de produzir conteúdo sobre o que verdadeiramente foi lido. Esses supostos fingidores alcançam espaços no algoritmo, promovem o consumo de livros como um item ornamental ou para provocar inveja a terceiros e quebram o movimento de verdadeiros books influencers, incentivadores do ato da leitura.

“Ah, mas o livro é uma obra de arte, um item a ser degustado, apreciado e explorado, apenas intelectuais andam com livros nas mãos ou exibem grandes bibliotecas….” Sim, você está enganado! Esconda seu livro na bolsa, observe se tem alguém olhando, acenda a Luminária e vamos conferir se realmente o livro se tornou um artigo exibicionista ou não.

Sim, compra-se livros para decoração

Em agosto de 2025, os artistas Rafa Kaliman e Natanzinho divulgaram em suas redes sociais que estavam comprando cerca de R$ 10 mil em livros decorativos para a cozinha da casa deles. A situação ficou mais jocosa quando, ao mostrar os exemplares comprados, havia um sobre o pintor “Francis Bacon: A Beleza da Carne”. Muitos amantes da literatura, ao verem esse recorte, ficaram revoltados por considerarem o livro como uma arte, um artigo de luxo e de conhecimento, um quebrador de estigmas, algo a ser levado com seriedade.

Em resposta ao alvoroço, Rafa Kalimam afirmou que, apesar de ter comprado vários volumes com objetivo ornamental, também adquiriu alguns exemplares que são obras de caráter literário, como os best-sellers “Salvar Fogo” de Itamar Vieira Junior e “Mudar: Método” de Édouard Louis. Ela explicou que os comprou com o intuito de lê-los e que irão compor a biblioteca da casa.

Mas não se engane, o casal não é o único a usar livros como adorno de ambiente, Ashley Tisdale também foi criticada ao adquirir 400 volumes apenas para preencher uma estante.  A atriz americana argumentou que qualquer designer teria feito o mesmo.

Se realmente os exemplares serão lidos ou se irão servir como itens decorativos na estante, não sei, mas a polêmica já foi instaurada. O que talvez os amantes de livros não saibam é que o uso desses produtos editoriais está tomando proporções muito distantes do verdadeiro intuito, o livro deixou de ser entretenimento e passou a ser marketing.

Sim, há livros intencionalmente decorativos

A maioria dos exemplares adquiridos pelo casal de artistas, de fato, são categorizados como livros decorativos. Os chamados coffee table books são obras com forte apelo estético e vendidos como objetos de decoração mesmo, um item comum aos lojistas de móveis. Arquitetos e designers de interiores costumam usar mão destes exemplares, escolhendo-os por tamanhos e por paleta de cores para combinar com o ambiente.

Porém, as estantes milimetricamente decoradas não são compostas apenas por coffee table books, muitos adquirem obras literárias para ornamentar o ambiente. É o que comenta Maristela Calil para o Globo, dona de uma livraria que fornece exemplares sob encomenda.

Há aqueles que ainda compram caixas que simulam livros falsos e ocos, com lombadas trabalhadas para promover beleza e destaque. Nas redes sociais há tutoriais de como fazer esse tipo de item, por vezes ensinando também a pintar a lombada de volumes velhos e desconhecidos ou fabricar luvas para envolvê-los e simular edições de luxo.

Sim, você pode contratar um book stylist

O livro não é somente um adereço decorativo, é também um símbolo de intelectualidade. Alguns famosos, para serem vistos como bons leitores, usam exemplares literários bem-conceituados no mercado editorial ao saírem nas ruas ou para postar em suas redes sociais. Novelas brasileiras costumam trazer seus personagens segurando algumas obras para promover sua imagem.

Para isso, é contratado um profissional que até então eu desconhecia: o book stylist. É um sujeito que seleciona títulos para outras pessoas mostrarem em publicações ou carregarem nas mãos ao caminhar nas ruas. Esse sujeito, pouco conhecido no mercado nacional, já dá seus ares de atuação através de modelos e artistas internacionais.

Para o jornal O Tempo, o analista de tendências de cultura e comportamento, Lucas Liedke, afirmou que a exibição dos famosos com livros é positiva desde que tal ação não seja algo superficial, “se a gente contrata alguém para nos dizer o que comer, por que não podemos terceirizar a curadoria de livros e conhecimento?”. Já a consultora de moda Chris Francini enxerga esse movimento como um estilo de autoexpressão, ao encarar o livro como um objeto de moda. O meu ponto de vista se une ao da professora da UFRJ, Casarin, a respeito das pessoas que vivem de imagem e fazem tudo com intenção mercadológica, ou seja, o livro agora está sendo usado para construir a imagem de personas públicas.

Sim, ler virou performance

As redes sociais são grandes fomentadoras da prática da leitura, mas o uso do livro vai além desta promoção, é também empregado como artifício de marketing. Um termo para designar esse fenômeno é o performative reading, que pode ser explicado como aquele que não somente finge que está lendo algo, mas também exibe a todos.

Issaaf Karhawi, professora da USP e pesquisadora de comunicação digital, explica que para os influenciadores há uma linha tênue entre ler um livro como uma atividade para si e a intenção de mostrar aos outros isso, “aquele espaço do silêncio da leitura, que antes era íntimo, agora transborda para a esfera pública”, comenta ela para a Revista Gama.

A youtuber Júlia Leivas fez um vídeo sobre o consumo exagerado dos livros como performance para o mundo digital. Seus reacts mostram outros influenciadores exibindo mais de 30 livros comprados em um único mês ou quando estes consumidores compram exemplares de luxo ou edições limitadas de uma mesma história que já têm. O questionamento final é se realmente aquelas pessoas leem o que mostram ou se são apenas materiais para conteúdos rasos e até enganosos.

Também podemos discutir se estes promovedores do mercado do livro que leem dezenas de volumes por mês também não seja um performative reading, ao priorizarem a quantidade de obras lidas ao invés da qualidade da leitura. Alguns argumentam que tal rotina é possível, pois há muitos exemplares com até 200 páginas, narrativas pouco descritivas e histórias com ritmo acelerado, promovendo assim a finalização das obras em poucos dias. Outros admitem que evitam calhamaços, clássicos que por vezes exigem uma leitura mais atenta e até mesmo pulam parágrafos e priorizam diálogos para agilizar o processo.

Eu mesma mal consigo ler três obras mensais, a rotina de trabalhar e cuidar da casa limita muito meu tempo, mas me esforço para gerar conteúdo aqui para a coluna e também em meu instagram. Eu entendo também que muitos influenciadores trabalham exclusivamente com conteúdo literário, contam com mais tempo livre para investir nesta atividade e há mais apelo publicitário para cumprir cronogramas de entregas.

Mas nem tudo é justificável, às vezes a quantidade de entrega é resultado de um conteúdo bastante superficial. O termo associado a este fenômeno é o reading aesthetic, referindo-se aos books influencers que dão prioridade mais à estética e às últimas tendências do que ao conteúdo literário. Muitos que embarcam nessa tendência de criar conteúdos de compras, são acusados de exporem resenhas sem profundidade, uso apenas de resumos e sinopses já disponíveis na internet e, por vezes, utilização de plágio ao divulgar como seu o conteúdo de terceiros de menor alcance.

Sim, há leitores que verdadeiramente leem

A jornalista Alaina Demopoulos, do The Guardian, sentiu na pele o julgamento de ser vista lendo um livro em um barzinho, quando duas jovens se aproximaram dela e comentaram satiricamente sobre tal atividade. Demopoulos atribui tal atitude ao performative reading e como tal tendência digital chegou como desconfiança na vida real, o simples hobby de ler em público gerou uma investigação em massa se tal atividade é uma performance estética ou não.

Com isso, a jornalista propôs um experimento social consigo mesma. Comprou um livro com cerca de 1.000 páginas, um exemplar bom o suficiente para ser exibido, e expôs sua compra atentando-se aos olhares julgadores dos transeuntes. Na livraria onde comprou o volume, no metrô e no parque, ela notou que ninguém deu a mínima para sua presença e para seu livro em mãos e, a partir do momento que se concentrou na leitura e esqueceu de sua pesquisa, divertiu-se.

Isso me lembrou uma página no instagram chamada Vi Você Lendo, que flagra e registra usuários do metrô de São Paulo com os livros abertos enquanto aguarda o transporte ou transita pela cidade. Tais pessoas não estão ali performando um hobby, elas verdadeiramente estão aproveitando o hobby.

Como criadora de conteúdo literário, também mostro um pouco sobre minha rotina de leitura em minhas redes sociais. Muitas das vezes costumo compartilhar um story sobre minha atual leitura após o almoço, durante meu intervalo de trabalho, mas não com o objetivo de me exibir apenas, mas para incentivar o ato de ler no pouco tempo livre que uma CLT tem, aproveitando as pequenas oportunidades para ler algumas páginas por dia.

Com isso, podemos ver que o livro é um objeto versátil, enquanto alguns o encaram como um item ornamental ou um adereço de moda, outros o veem como um artigo de conteúdo e distração. Eu confesso que não gosto do livro sendo usado como um item estético, mas entendo que o mundo é consumista e promove a exibição da boa aparência, cada um faz o que quer com seu dinheiro.

Luminária é a coluna literária na qual conversaremos sobre livros a cada quinze dias. Para mais conteúdos literários, acesse o portal.

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