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Festival de Teatro de Curitiba – Amor Barato

Foto: Vitor Dias

Prontos para uma resenha de encantamento e indignação?

O último dia 9 de abril foi o último dia do Festival de Teatro de Curitiba de 2023 e quem te escreve hoje tem uma pequena obsessão teatral. Por isso trago para vocês a resenha de uma das peças que mais gostei de assistir nas duas semanas em que Dionísio esteve festejando por aqui.

Essa resenha não é spoiler-free, mas a experiência é mais importante do que a surpresa, e o principal spoiler será marcado e você pode pular se quiser. Até porque a peça vai voltar e você pode assistí-la depois.

Amor Barato – O Musical conta a história do amor proibido entre um rato e uma barata. Se conhece a narrativa clássica de Romeu e Julieta, de Shakespeare, você já sabe onde o romance dos dois vai parar desde o início. A tragédia – transformada em tragicomédia nesta produção – foi escrita e musicada por Jarbas Bittencourt, Ronei Jorge e Fábio Espírito, e trazida para Curitiba pelo Núcleo de Teatro Profissional Cena Hum sob a direção de George Sada.

O fedor dos esgotos

“O mundo inteiro é um pouco podre”. Se eu só tivesse uma frase para descrever a mensagem de “Amor Barato”, seria essa. Ênfase no “um pouco”, mas negrito no “podre”. Felizmente tenho uma resenha inteira para escrever e não só uma frase.

Desde o início, a peça te diz que é sobre o amor proibido entre um rato e uma barata mas, se você está prestando atenção, ela nunca foi sobre isso. Ela é sobre a natureza do mundo. Um bocado pessimista a meu ver, mas não dá pra culpar o autor pela perspectiva.

Os 5 Ws

Antes de começar, pensemos um pouco em jornalismo. É minha formação, então é impossível não pensar nisso. Quando se pensa em passar uma notícia, o primeiro período de jornalismo vai te ensinar os 5 W. Eles aparecem em outras áreas, então é bem possível que você, leitor, já os possa conhecer, mas vamos relembrar. Who, what, when, where and why. Do inglês, quem, o quê, quando, onde e porquê. Os principais pontos para se contar uma história. Mantenha isso em mente enquanto voltamos a falar da peça.

Quem é quem na fila do pão?

Foto: Vitor Dias

Foto: Vitor Dias

Os dois personagens principais, Dom Ratão e Dona Baratinha, são jovens, ingênuos, e são o principal gancho da história que finge ser sobre amor, mas na verdade é sobre dor e poder. Os imagino no fim da adolescência e início da idade adulta, aquele ponto entre os 18 e 23 anos em que a confiança é alta, a experiência é baixa e Blink 182 acha que ninguém gosta de você. Eles são um rato e uma barata, espécies que implicitamente se odeiam, mas o casal e seu romance não importam de verdade. São principalmente vítimas de seus pais, os verdadeiros protagonistas.

O pai de Dom Ratão é um senador. Poder político da mais alta estirpe. Ele decide o onde e o como o dinheiro público será investido, decide para quem e como as propinas serão pagas, define quais – leia-se, “o quê”, como se objeto – serão as vítimas e beneficiários de seu poder. No caso deste “quais”, pense em quais pobres serão mortos pela polícia e quais ricos podem morar na área que ele escolheu desenvolver com o poder que tem – até a alta classe é objetificada por ele.

Temos aí 3 dos 5 Ws. Who, What e Where. Falta When e Why. “When”, o “quando”, não importa muito. É a parte que a peça ignora, porque, além de não ser jornalismo, se você for estudar história, vai perceber que o “When” é “Whenever”. Sempre foi assim, atualmente é assim, e eu só evito dizer que “sempre será assim” porque às vezes o futuro gosta de nos surpreender e eu poderia estar errado, mas se eu fosse apostar, apostaria que sempre será.

Falta apenas o “Why”, porquê, e o porquê é simples. Poder.

Poder

Spoiler Warning

Fica aqui o spoiler warning. Se quiser assistir a peça e ter uma experiência sem spoilers grandes, pule os próximos 5 parágrafos e vá direto à sessão “As vítimas”. Se não conseguir resistir, não tem problema. Em Amor Barato, “O que” acontece é muito menos importante do que o “Como” acontece. É teatro, não jornalismo, nem universo cinematográfico. Mas você está avisado dos spoilers mais dramáticos.

O porquê

Foi Sigmund Freud que disse que tudo é sobre sexo, menos sexo. Sexo é sobre poder. Aí é que entra quem eu chamo de segundo protagonista. O pai de Dona Baratinha.

Nós estamos acostumados à corrupção. É terrível, mas estamos acostumados. Fácil rir quando um personagem faz piada sobre dinheiro na cueca ou leite condensado para o exército. É engraçado. No fundo, faz sentido. Uma situação um pouco ridícula e corrupta para satisfazer um desejo inocente como aquele por doces é fácil de aceitar como piada. Desvio de dinheiro está nos jornais há décadas. Existe aquela identificação do “não concordo com o método, mas entendo o motivo de ele querer isso”.

A mais nojenta da baratas

Se você decidiu ler o spoiler, fica também o trigger warning nessa próxima frase. É bem difícil fazer piada sobre pedofilia, e eles não fazem. Quando o pai de Dona Baratinha é revelado como pedófilo, a risada morre. Note o itálico somado ao negrito. A risada MORRE. Não tem nada de engraçado nisso, porque esse é o “why”. O motivo de toda a deturpação, no fim, é poder. Poder sobre aqueles que podem menos do que outro alguém, e ninguém pode menos do que outro alguém do que alguém imaturo frente a alguém maduro.

O pai de Dona Baratinha se entretém vendo as jovens amigas de sua filha e, por fim, se mata cobrindo-se de inseticida em meio a um último gozo declamado com um quase-orgulho.

Eu estava pronto, eu estava preparado para gritar um “Uhul!” no silêncio e comemorar a morte do personagem do meio da plateia como se comemora a morte de um monarca, mas nem mesmo esse prazer ele me deu. O pai de Dona Baratinha, pedófilo e magnata da comunicação, morre fora de cena e deixa todo o ódio que senti por ele dentro de mim, incapaz de escapar, apodrecendo em meu coração.

As vítimas

Já expus a mensagem principal da peça neste texto de indignação e não acho que preciso dizer mais nada, mas ainda assim eu vou, em respeito às vítimas. Existem 4 vítimas verdadeiras na história, apesar de duas delas serem discutíveis.

As quatro verdadeiras vítimas dentro de Amor Barato são Dona Baratinha, Dom Ratão, a mãe de Dom Ratão, Madame Ratazana, e uma outra, que vou expor no fim, já que ela é um pouco coletiva.

Dona Baratinha

Dona Baratinha é quem eu chamaria de principal vítima com nome. Os únicos pecados dessa Julieta do esgoto são a propensão dionisíaca e a ingenuidade. Fosse ela homem, teria o mundo em suas mãos e talvez vivesse para pecar mais. Ela gosta dos prazeres da carne. Drogas, dança, sexo. “Baratinha gostosa”, como é chamada na música que a apresenta, se aproveita de ser gostosa, e estou com ela nisso. Faz bem em aproveitar os prazeres que seu corpo pode lhe dar. Entretanto, é ingênua. Deixa-se levar pelo que o mundo joga a sua frente e isso é quase como uma isca para ela, que seria vítima do mundo no futuro, não tivesse sido no presente.

No fim, é uma vítima da própria ingenuidade. A classifico como completamente vítima.

Dom Ratão

A segunda vítima é Dom Ratão. Jovem e ingênuo, encontra o amor e se encanta. Talvez sobrevivesse para se redimir caso o Destino – note o D maiúsculo para indicar substantivo próprio – não tivesse planos diferentes. Não foram suas decisões que o levaram ao fim, mas o acaso mesmo. Shit happens. Às vezes a sorte lhe dá uma vitória na loteria, mas às vezes ela te joga dentro da panela de feijão e, se você estiver contando com a sorte, o que a sorte lhe dá é o que você tem. Foda-se se o Carma existe ou não. Vítima de verdade? Parcialmente, mas acho que não.

Madame Ratazana

A terceira vítima é a Madame Ratazana. Mãe de Dom Ratão, serve como espelho do futuro alternativo de Dona Baratinha. Ela se casou com um homem com potencial para riqueza e poder e colhe os frutos. Os frutos não são doces, e ela encobre a amargura com o álcool – imaginei vinho a princípio, mas no fundo dos esgotos de Amor Barato, acredito que ela deve beber whisky. Madame Ratazana bebe até a morte porque iludir-se com o amor a levou a casar-se com o Senador e, nessa relação, considera-se presa – você, leitor, pode escolher se a palavra “presa” significa “aquele preso a” ou “alvo da caça de um predador”.

Caiu em uma ratoeira, coitada, e ao ver-se presa, deitou e esperou o último amanhã chegar.

A verdadeira vítima da história

Foto: Vitor Dias

Foto: Vitor Dias

Sobra a quarta e última vítima, ela não é um personagem em si. É a rata pobre que é assassinada por Dom Ratão. Dom Ratão é uma das vítimas, mas é importante lembrar que ele cometeu um assassinato logo no início. Foi punido por isso? Sim, mas não nos enganemos como plateia. Nem sua punição, nem o fim de sua vida, foram justiça. Foram acaso. Dom Ratão matou uma pessoa e se não tivesse caído dentro do feijão, cresceria para ser seu pai, e Dona Baratinha cresceria para ser a Madame Ratazana, mesmo que enbaratada – estou tentando evitar dizer que seria uma versão barata de Madame Ratazana, mas os trocadilhos já estão fora da caixa.

No fim, a maior vítima sem pecado é a rata assassinada. Uma personagem sem nome, porque seu único pecado foi a falta de poder até para ter um. Representante de todas as vítimas sem poder, nem de ingenuidade ela sofre, apenas da crueldade daqueles que não ligam para ela.

Não importa onde na hierarquia social você se encontra, não há nada mais podre do que abusar daqueles que têm menos poder do que você.

Por isso digo, a peça “Amor Barato” nunca foi sobre amor. Ela é sobre a podridão. No fim, ela só nos diz que o mundo inteiro tem um pouco de cheiro de esgoto.

Eu fecharia o texto aqui, mas ainda acho essa perspectiva um pouco pessimista demais.

Se o abuso do poder é podridão, que tal tentar ser menos podre? Acho que é um esforço válido. Mantenho minha opinião: Acho a peça um pouco pessimista demais. “O mundo inteiro é um pouco podre” é a mensagem que eu recebi, mas pessoalmente acredito em algo diferente. O mundo, de verdade, é menos podre do que isso. Mesmo que só um pouquinho.

Duas notas finais

Em primeiro lugar, quero fazer um breve brinde ao elenco. Um trabalho excelente que merece um texto inteiro dedicado a isso, cobrindo uma atuação tão virtuosa quanto possível. Entretanto, não acho justo que um trabalho tão bem-feito compartilhe espaço com essa análise pesada e sombria como essa. Quisera eu, neste texto, ter cantado com a força de Carolina Gruhl no papel de Madame Ratazana ou dançado com a fluidez da Baratinha de Marina Pferl desde o início de minha redação.

A segunda nota é: Se você perdeu o Festival de Teatro, não tema. Amor Barato está voltando para os palcos em breve e, quando as datas estiverem disponíveis, eu estarei de volta para contar para você.

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