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O potencial terapêutico de Getting Over It With Bennett Foddy

É possível simplificar o conceito de muitos jogos com piadas. Dark Souls, por exemplo, pode ser chamado de “Rolling Simulator” e quem jogou vai concordar que, enquanto não é uma descrição precisa, a piada faz sentido.

Muitos jogos poderiam fazer a mesma piada que os jogadores de Getting Over It fez e quem jogou o jogo acharia graça. League of Legends, Celeste, Dark Souls e vários outros. Mas dos muitos jogos que já joguei que poderiam brincar com isso, esse é o único em que a piada dói mais do que é engraçada, de tão precisa que ela é.

Getting Over It tem uma categoria especial no site speedrun.com: Uninstall.

O que é Getting Over It?

Vamos parar de suspense e ir logo ao ponto. Getting Over It é um jogo sobre frustração, e ele vai te frustrar de verdade se você decidir jogar, até você querer desinstalá-lo.

Quando você abre o jogo, vê um homem em um caldeirão preto e um martelo. Seu mouse controla a cabeça do martelo, que você pode usar para se locomover. A sua direita você encontrará uma árvore e, depois da árvore, uma montanha.

Suba a montanha. É só isso. Não tem mecânica especial, não tem uma narrativa, não tem golpes especiais ou inimigos. É só você, seu martelo e as pedras no seu caminho. Ah, e claro, tem o Bennett, o criador do jogo. Ele também está lá.

Bennett Foddy criou o jogo em homenagem a um outro jogo lá dos anos 2000 e ele tem um monólogo que é liberado para você conforme você avança na escalada. Ele fala sobre o jogo que o inspirou (Sexy Hiking), frustração, sobre o processo de criar Getting Over It. Fala sobre cultura digital e sobre força de vontade.

Ele também fala “Oof, você perdeu bastante progresso agora. É uma frustração profunda, um soco no estômago” e diversas outras mensagens motivacionais com gosto de condescendência e fontes de raiva que acompanham suas quedas, e elas serão muitas. Os controles não são práticos. Nas próprias palavras dele sobre Sexy Hiking, que também se aplicam a Getting Over It, “Nenhum progresso é garantido, alguns penhascos são muito íngremes ou muito escorregadios, e o jogador está constantemente em perigo de cair e perder tudo”.

Frustração

Eu quero ilustrar isso pra vocês de uma maneira mais clara sem que você mesmo precise jogar, afinal, enquanto eu AMO esse jogo, não ouso recomendá-lo de verdade para ninguém. Algumas torturas só devem ser autoinfligidas.

O jogo tem 3 achievements na Steam. Os dois principais são “Got Over It”, que você consegue vencendo o jogo pela primeira vez, e “Got Over It, For Real This Time”, conquistado ao alcançar o topo a segunda vez.

Quando eu finalmente consegui o primeiro achievement, eu já tinha QUATORZE HORAS DE JOGO.

Você consegue imaginar o que são 14 horas se arrastando com um martelo montanha acima só pra cair de novo, e de novo, e de novo, e de novo e de novo e DE NOVO E DE NOVO […]?

A título de curiosidade, o recorde de speedrun glitchless é de 59 segundos. MENOS. DE UM. MINUTO. Mas boa sorte em passar sequer pelo primeiro obstáculo nesse tempo em sua primeira tentativa.

O jogo tem gosto de injustiça, mas não é injusto. As quedas parecem ser sua culpa, não do jogo, e normalmente são. Cada obstáculo é real. Não porque é um obstáculo intransponível, mas porque o obstáculo não está em seu computador. Ele está em sua cabeça.

O único obstáculo de verdade é sua capacidade de continuar tentando. De não desistir. E é por isso que eu digo que é um jogo terapêutico. Não do jeito que se pensa quando alguém fala em Stardew Valley, que vai aliviar sua ansiedade e relaxar você, mas do jeito que te faz encarar seus próprios demônios e enfrentá-los. O jeito que dá trabalho e resultado. E tudo isso dentro de um caldeirão.

Em Getting Over It, o único inimigo de verdade é você mesmo e sua disposição de se enfrentar.

(Disclaimer: Um jogo não pode substituir terapia, e isso eu posso recomendar com gosto sem medo de torturar ninguém. Diferente de Getting Over It.)

A derrota

Em 2019 eu perdi meu emprego e estava com dificuldades em achar um novo. Também estava em uma fase de transição complicada entre o fim da faculdade e a vida profissional. Eu mandava currículos pra lá e pra cá, fiz algumas entrevistas em que não passei, e levei meses pra finalmente encontrar um lugar que estava disposto a me pagar por meus textos de marketing de conteúdo.

Na época eu estava namorando e o namoro sofreu um pouco por causa disso. Minha então parceira foi bem compreensiva com meu estado mental, mas ela podia ver que existia um problema ali. Um que eu mesmo não via.

Algumas brigas aconteceram por causa dessa dificuldade empregatícia como gatilho mas, na verdade, eu acho que nenhuma delas foi por causa disso mesmo. Elas sempre evoluíam para conversas sobre alguns comportamentos específicos que eu tinha na relação já há algum tempo, comportamentos que a magoavam um pouco. Eu dizia que ia melhorar eles, que ia trabalhar neles. Não era mentira, mas o sucesso naquilo era tão grande quanto meu sucesso em conseguir emprego.

“Parece que você nem está tentando”, ela disse uma vez. Fez questão de dizer “parece” para me mostrar que sabia que eu estava me esforçando, mas que ela gostaria que eu tentasse mais. Eu ficava ofendido, porque eu estava sim tentando. Eu estava mandando currículos, eu estava tentando resolver a questão que a incomodava e que, honestamente, me incomodava também.

Foi mais ou menos nessa época em que eu comprei o jogo e joguei as primeiras 7 horas da minha tortura, em que cheguei na metade do caminho, que até hoje considero a parte mais difícil do jogo. Eu travei lá. Devo ter passado 2 das 7 horas de gameplay, feitas no decorrer de um mês, tentando passar do chamado “Orange Hell”, que eu considero até hoje a parte mais difícil do jogo.

Bennett tem muitas falas que tocam quando você cai. Quotes de autores famosos, frases próprias, até mesmo músicas. Entretanto, depois de um bocado delas sem progresso, até mesmo ele se cala e deixa você tentar sozinho. Talvez tenha sido o silêncio dele que mais me doía. Eventualmente, eu falhei. Eu desisti. Eu desinstalei o jogo.

A Montanha venceu.

Deboche na biblioteca

Eventualmente eu arranjei um trabalho, meu relacionamento evoluiu, eu cresci como parceiro, como profissional, como pessoa e até como jogador, mas o jogo ficou esquecido na Steam. Assisti speedruns para saber como ele acabava, impressionado com a velocidade. Mas terminar de jogar eu mesmo? Não. Getting Over It ficou largado em minha biblioteca, debochando de mim e de meu fracasso.

Vez ou outra eu batia o olho nele e rapidamente desviava. Anos se passaram. Eu troquei de emprego, fiz terapia, troquei de emprego de novo. Terminei meu namoro, comecei outro, terminei esse também. O mundo acabou em COVID e se reconstruiu de volta, mas Getting Over It seguia ali. Ignorado.

Vitorioso.

Realização

Em novembro do ano passado o Youtuber que me apresentou o jogo postou um vídeo novo. Ele precisou de 8 vídeos, incluindo uma live de mais de 2 horas, para chegar ao topo pela primeira vez, lá no fim de 2017 e começo de 2018.

Dessa vez, ele venceu em um único vídeo em pouco menos de uma hora e meia, apenas para provar para si mesmo que ele conseguia. Vendo ele conseguir, eu olhei para mim mesmo.

O final do ano de 2022 foi difícil para mim. Mentalmente eu estava instável de uma maneira nova e sentia que precisava fazer alguma coisa. O que eu fiz foi instalar o jogo novamente. Demônios antigos e esquecidos brigavam comigo em minha cabeça e, em meu computador, aquela montanha me encarava.

Chegar até a Laranja já era fácil. Eu caí de lá até o começo tantas vezes alguns anos antes que não precisei de mais do que 30 minutos para chegar no que considero a metade do jogo. Mas aquele lugar maldito ainda estava ali, exatamente como era antes.

Eu tentei pela primeira vez e caí. Não até o começo, mas um bom pedaço. Tentei de novo.

Caí.

Mais uma vez.

Caí.

Eu fechei o jogo naquele dia de novembro de 2022, mas abri novamente dois dias depois. O jogo salva automaticamente e, por isso, lá estava eu, exatamente onde tinha ficado quando caí do Orange Hell.

Cada queda me custava um mínimo de 10 minutos para a próxima tentativa daquele obstáculo, isso quando não caía até o começo. Todas as quedas me frustravam.

Foi quase um mês disso. Alguns minutos de subida, uma queda, e eu fechava o jogo para voltar dois dias depois, descompromissado, para me frustrar novamente e fingir que aquilo não estava me afetando tanto quanto estava. Aquele fracasso tinha gosto de derrota de verdade e as horas de gameplay aumentavam, devagar.

Era madrugada do dia 20 de dezembro de 2022 e eu abri o jogo. Depois de uma única queda, meus dedos automaticamente foram para o Alt+F4, mas eu não apertei. Lembrei-me de minha ex falando anos antes sobre como “parecia que eu não estava tentando”, e alguma coisa clicou em minha cabeça.

Não, ela nunca disse que “parecia” que eu não estava tentando por saber que eu estava. Ela dizia aquilo porque ela sabia exatamente qual era o problema, queria me dar a dica, mas sabia que eu não o enxergaria se ela simplesmente me falasse.

Eu realmente não estava tentando.

A constância da tentativa

Uma das coisas que Bennett Foddy fala quando você cai é um quote de Mary Pickford, uma atriz do início do século passado.

Essa coisa que chamamos de fracasso não é cair. É ficar caído”.

Foi o que eu fiz em com esse jogo anos antes e era o que eu estava fazendo de novo. Eu me permitia ficar caído. E enquanto eu estava fazendo várias tentativas, elas eram espalhadas. Descompromissadas. Inconstantes. Eu tentava uma vez a cada dois dias, permitia que a frustração me fizesse fechar o jogo ao invés de continuar a tentar.

Naquele dia, 6 meses atrás, eu lembrei de 2019 e dos currículos que eu mandava, um ou dois a cada dois ou três dias. Lembrei-me de algumas de minhas brigas com minha ex durante nosso namoro, mas também das dificuldades que tive com o TCC em 2018 e da faculdade de psicologia que eu abandonei em 2013 para ir para jornalismo. Lembrei das provas bimestrais da escola que eventualmente eu recuperava na prova final e lembrei do meu violino abandonado em cima do meu armário. Lembrei dos livros que não terminei de escrever.

Naquela noite, lembrei também de cada cigarro que fumei algumas horas depois de decidir mais uma vez que eu estava parando de fumar. Do meu lado, naquele dia, havia uma carteira de cigarros, uma das principais questões que estavam afetando minha saúde mental naquela época.

De repente eu entendi que eu estava fazendo tentativas, mas o verbo nunca era no presente. Era sempre no passado ou no futuro. Sempre “Tentei” e “Vou tentar” ao invés de “Estou tentando”. Toda tentativa era uma nova tentativa abandonada logo depois.

Essa era uma questão com a qual eu já lidava há anos com minha psicóloga mas, finalmente, parecia que eu estava olhando para o problema cara a cara.

Eu precisava superar. I had to Get Over It.

Getting Over It

Hoje meus achievements estão lá e são honestamente motivo de orgulho para mim. Não pelo jogo em si, mas pelo que eles simbolizam daquilo que vocês conhecem de mim agora. Quando finalmente alcancei o topo, 2 dias depois daquela realização, eu tinha 14 horas de jogo na Steam. As 5 horas finais foram praticamente uma tentativa única recheada de quedas e de frustração, mas sem aquele gosto de derrota. Dois dias depois da primeira vitória, eu alcancei o pico pela segunda vez. Eu precisava ter certeza. Minha segunda vitória levou menos de 3 horas.

Enquanto às vezes ainda tenho dias ruins e dias em que posso querer ficar caído, eu vejo com muito mais clareza o que está acontecendo. Eu jamais teria derrotado Malenia, Blade of Miquella, em Elden Ring, se não tivesse conquistado a montanha de Getting Over It primeiro, mas o efeito desse jogo vai muito além do mundo digital em minha vida.

Terminei de escrever meu livro mais recente essa semana e vou lançá-lo até o final do ano. Não fumo desde dezembro do ano passado.

Graças a esse jogo, eu aprendi a escalar.

O terceiro achievement

O terceiro achievement de Getting Over It se chama “So Over It”. Ele não tem o mesmo simbolismo que os outros para mim. Depois de tudo o que passei, conquistá-lo é só um momento normal de gaming. Eu não o tenho. Ainda.

É só um desafio como o de qualquer outro jogo agora. Para consegui-lo, você precisa chegar ao topo da montanha 50 vezes. Curiosamente, a cada vitória, seu caldeirão preto muda levemente de cor, progressivamente, até a vitória de número 50. Por causa dessa progressividade, em algum ponto você simplesmente percebe a mudança.

Nas últimas semanas eu joguei bastante. Enquanto escrevo esse texto eu tenho 45 horas de Getting Over It e um total de 33 vitórias. Cada uma é mais fácil do que a anterior, cada topo traz consigo aquele mesmo gostinho de vencer um boss familiar, mas desafiador, de um jogo comum.

Meu recorde atual é 9 minutos e 40 segundos. O monólogo de Bennett Foddy, ininterrupto, tem 9 minutos e 50 segundos. Essa vitória ninguém me tira.

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