Livros de terror são os meus favoritos. Não que eu goste de todos, claro. O gênero é uma montanha-russa: às vezes você embarca esperando um susto e ganha só um tropeço, mas de vez em quando aparece aquele livro que te devora de dentro pra fora (no melhor sentido possível).
Depois de um bom tempo lendo histórias contemporâneas cheias de casas assombradas e monstros metafóricos, eu percebi que faltava uma vertente que eu sempre admirei de longe: o terror medieval.
Então decidi corrigir essa falha grave da minha lista e mergulhar em Between Two Fires, de Christopher Buehlman.
Em Between Two Fires, a Europa está sendo destruída pela peste negra, e a humanidade parece ter sido esquecida por Deus. No meio disso, um cavaleiro excomungado, uma menina que fala com anjos e um padre alcoólatra cruzam uma França tomada por demônios, mortos-vivos e homens piores do que ambos.
E o resultado? Uma das histórias mais brutais, inteligentes e, surpreendentemente, emocionais que li no último ano.
Quando Deus se cala, os demônios falam
O ano é 1348. A peste bubônica está devastando a Europa, e cada vila parece um cenário de fim do mundo. O cheiro de morte é constante. O medo virou religião. E é nesse caos que conhecemos Thomas de Givras, um cavaleiro caído em desgraça que sobrevive como pode. Thomas é o tipo de personagem que carrega o peso do mundo nos ombros, mesmo que jure não se importar.
Um dia, em uma aldeia morta, Thomas encontra Delphine, uma menina órfã que fala com uma serenidade desconcertante sobre anjos e missões divinas. Ela diz que precisa chegar a Avignon, e ele (cansado, cético e provavelmente amaldiçoado) decide acompanhá-la.
A dupla logo ganha a companhia de Matthieu, um padre que gosta mais de vinho do que de penitência e juntos eles começam a jornada: três almas falhas, andando entre ruínas, cadáveres e criaturas que não deveriam existir.
Buehlman descreve esse mundo com uma vividez quase cinematográfica. A França medieval aqui não é um cenário bonito mas sim um campo de batalha espiritual, onde cada estrada parece levar a uma nova tentação, e cada cidade esconde algo ainda mais podre do que a anterior.
Between Two Fires fede a enxofre (e a humanidade)
Se você gosta de terror com um toque de teologia blasfema, prepare-se. Between Two Fires é um festival de horrores teológicos, mas não de um jeito gratuito. As criaturas que surgem, costuradas de carne morta e almas condenadas, são mais do que monstros: são reflexos do que sobra da fé quando ela apodrece.
E, honestamente, o livro é mais humano do que demoníaco. Os verdadeiros vilões raramente são as criaturas do inferno. São os homens famintos, os padres corruptos, os soldados enlouquecidos pela dor. São os que acreditam que Deus lhes deu permissão para tudo.
É curioso, porque, apesar de ser uma história sobre o fim do mundo, há algo de esperançoso em Between Two Fires. O horror nunca é vazio. Ele está ali pra perguntar: o que você faria se o céu estivesse em silêncio? E até onde vai a sua fé quando tudo parece perdido?

Os personagens são o coração do livro e um dos maiores acertos de Buehlman. Thomas é o arquétipo do homem quebrado, mas escrito com tanta sinceridade que a gente acredita em cada contradição dele. Ele é violento, cínico, mas ainda capaz de gestos pequenos de bondade que doem mais do que qualquer confissão.
Delphine é a luz na escuridão. Ela não é uma “criança mágica” no sentido clichê, mas uma figura que carrega o mistério da fé em tempos de desespero. Você nunca sabe se ela é uma santa, uma profeta ou apenas uma menina muito corajosa e o livro é esperto o suficiente pra nunca dar uma resposta definitiva.
Já Matthieu é o alívio cômico mais triste que eu já li. Ele bebe, erra e tropeça o tempo todo, mas há um momento em que você percebe que ele é o elo mais humano entre os três. O trio forma um tipo de família estranha, sobrevivendo mais por teimosia do que por esperança.
A beleza bizarra de Buehlman
Christopher Buehlman escreve como quem está narrando uma missa num cemitério. Há ritmo, humor e um toque de irreverência que impede o livro de se tornar pesado demais, o que é um impressionante, considerando o tema. Ele alterna poesia e brutalidade com naturalidade, e a prosa tem aquele tipo de elegância que só existe quando o autor está genuinamente se divertindo com o próprio livro.
Há momentos de puro terror, sim, criaturas infernais, pestes, cadáveres que voltam à vida, mas o que realmente fica é o clima. Aquela sensação de andar por uma Europa em colapso, onde o medo é tão espesso quanto a névoa.
E, como todo bom terror, Between Two Fires fala muito mais sobre os vivos do que sobre os mortos. No fundo, esse é um livro sobre fé. Não no sentido religioso, mas no de continuar andando mesmo quando tudo parece perdido. Thomas começa descrente, apenas tentando sobreviver e termina lutando por algo que nem ele entende totalmente.
Buehlman não entrega respostas fáceis, nem redenções plenas. Mas há um tipo de paz que nasce quando os personagens percebem que o inferno não é o fim, é só o caminho.
E é exatamente isso que faz Between Two Fires ser tão marcante: ele te provoca.
Between Two Fires é uma das melhores leituras que fiz em 2025. É épico, cheio de monstros, mas também de emoção genuína. Christopher Buehlman entrega um romance que fede a sangue e a desilusão religiosa, mas que também tem alma.
Se você gosta de histórias medievais, teologia sombria e personagens quebrados tentando encontrar sentido no caos, esse é o livro.
No fim, não sei se Between Two Fires me prendeu mais por causa dos demônios… ou porque ele me lembrou o quanto o ser humano continua sendo o pior tipo de monstro.