O ano de 2025 foi oficialmente quando resolvi mergulhar de cabeça no Kindle. Depois de anos acumulando livros físicos e reclamando de falta de espaço, finalmente aceitei que talvez fosse hora de dar um descanso para minha estante. Nesse processo de adaptação ao digital, acabei descobrindo uma coisa maravilhosa: quando você menos espera, o algoritmo ou um amigo bem-intencionado te indica histórias completamente perturbadas (mas ótimas).
Foi o caso de The Starving Saints, recomendado pela minha melhor amiga. Entrar no último mês do ano com um livro que enfia canibalismo, fé distorcida, política medieval e desejo proibido nas mesmas páginas? Super saudável, claro. Mas a verdade é que poucas leituras conseguem ser tão estranhas, provocativas e… frustrantes ao mesmo tempo e é sobre isso que quero falar hoje.
A Estranheza Como Porta de Entrada
The Starving Saints, de Caitlin Starling, é o tipo de livro que parece ter sido preparado em um caldeirão fervendo na era medieval, desejo sáfico reprimido e um punhado generoso de “o que foi que eu acabei de ler?”. É ambicioso, ousado e completamente sem pudor em sua própria esquisitice o que, por si só, já é um elogio.
A premissa é a seguinte: um castelo sitiado, à beira da fome, recebe a visita de “santos” que prometem alimento e salvação. Mas esses santos não são exatamente o que parecem, e o que começa como milagre rapidamente se transforma em um carnaval de excessos, canibalismo ritualístico e sedução divina. É criativo, é repulsivo, é fascinante e mesmo quando o livro derrapa, você continua lendo porque simplesmente precisa saber para onde aquilo vai.
Starling estrutura seu romance por meio de três protagonistas (Phosyne, Ser Voyne e Treila), todas presas em Aymar Castle, um reduto medieval fictício acuado por um cerco interminável. Cada uma delas contribui para a sensação de que estamos acompanhando a queda de um mundo inteiro vista por diferentes rachaduras de uma mesma muralha.
Phosyne, ex-freira e feiticeira, vive cercada de sujeira, obsessões mágicas e um senso torto de devoção.
Ser Voyne, cavaleira dedicada, tenta se manter íntegra em meio ao colapso físico e moral do castelo.
Treila, serva quase invisível, carrega a fome por vingança e talvez por liberdade.
A chegada da Constant Lady e de seus quatro Santos transforma a fome literal e emocional de cada personagem em terreno fértil para manipulação. É aqui que o livro brilha: a forma como usa o desespero para explorar fé, poder, necessidade, pertencimento e abuso.
Temas Ambiciosos em Uma Trama Às Vezes Sobrecarregada
O terror de Starling não se apoia em sustos, e sim em ideias desconfortáveis. A fome, simbólica e real, atravessa tudo. Fome por propósito, por reconhecimento, por amor, por controle e a autora puxa referências religiosas óbvias para distorcê-las até se tornarem grotescas. O resultado é uma metáfora poderosa sobre cultos, esperança desesperada e figuras messiânicas que prometem salvação enquanto devoram aqueles que juram protegê-los.
Mas nem tudo funciona.
Alguns elementos como criaturas invisíveis, símbolos desconexos e detalhes fantásticos soltos, parecem entrar apenas para deixar a história “mais estranha”, não necessariamente mais profunda. Quando o livro tenta equilibrar misticismo, política, fé, pecado, paixão e vingança ao mesmo tempo, algumas peças inevitavelmente ficam tremendo na bandeja.
A intenção é clara; a execução, nem sempre.
A escrita de Starling é conhecida por mergulhar o leitor em ambientes sufocantes, úmidos, claustrofóbicos, como em The Luminous Dead e The Death of Jane Lawrence. Aqui, ela faz o mesmo com Aymar Castle, transformando cada corredor em uma ruína viva impregnada de medo. Quando funciona, funciona muito bem: as descrições de banquetes hediondos, a presença quase divina dos santos, o erotismo roçando o grotesco. Tudo é vívido, áspero, visceral.
Mas o estilo “delírio febril” vai longe demais às vezes. As cenas começam a se repetir, os delírios se arrastam, a ambiguidade vira cansaço. O livro tem tamanho mediano, mas a sensação é de algo bem maior e não necessariamente no bom sentido. O ritmo patina, especialmente no meio.
Como experiência literária, The Starving Saints é única e isso não é pouca coisa. Como história, entretanto, sofre com excessos: excesso de símbolos, excesso de delírios, excesso de detalhes que não se conectam. Há momentos brilhantes, personagens com potencial enorme, temas corajosos e um mundo fascinante. Mas nada disso compensa totalmente o ritmo irregular e a sensação de que a obra tenta ser maior e mais estranha do que consegue sustentar.
É um livro que eu gosto, mas não amo e tudo bem, às vezes isso também significa que a leitura valeu a pena.
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