No episódio final da primeira temporada de Sweet Tooth, o narrador da história diz “aquilo que devia ter nos unido, só nos separou ainda mais. Ficamos com medo. Nos sentimos sozinhos“. Na época (2021), a frase fazia um paralelo direto com o período pandêmico que o mundo estava vivendo. Nessa terceira – e última – temporada, a frase volta a traçar paralelos com a realidade, mas numa outra questão: o extremismo político e social que parece estar cada vez mais emergente. Ainda assim, o seriado termina com uma mensagem de esperança, após uma temporada onde a fé (nos outros, na missão, no destino) pareceu ser a linha narrativa escolhida.
Nessa terceira temporada, Gus (Christian Convery) e sua trupe farão uma longa e arriscada jornada até o Alasca, onde espera se encontrar com Birdie(Amy Seimetz) – sua mãe adotiva – e, junto com ela, descobrir uma cura para O Flagelo, de acordo com o que pôde interpretar em um sonho vívido que teve na temporada anterior. Porém, serão perseguidos por uma nova vilã (Helen Zhang, também apresentada na segunda temporada), que acredita piamente que Gus é a chave para a erradicação do Flagelo e, consequentemente, o retorno do nascimento de bebês integralmente humanos – algo que ela almeja para sua filha grávida. Também temos a adição do Dr. Singh(Adeel Akhtar), que espera encontrar Gus e também acompanhá-lo até o Alasca.
Análise & Adaptação
Apesar da adaptação da Netflix ter sido baseada nos quadrinhos homônimos de Jeff Lemire, a série como um todo foge não só das histórias contadas nas publicações (os episódios possuem referências à obra original, mas com roteiro muito diferente) como também do tom do enredo (nas páginas das HQs, é tudo mais sombrio, violento e adulto). Ainda assim, vemos nessa última temporada uma pitada do teor de Lemire, onde Gus aos poucos parece aprender que não adianta apenas ter pensamento positivo para sair de circunstâncias complexas – algo que vemos logo no primeiro episódio, durante uma aposta que ele faz com sobreviventes. Também há uma necessidade de amadurecimento precoce do garoto, quando se vê obrigado a lidar com a quebra de expectativa (aprendendo que nem todos os humanos são compassivos, como Paba, Aimee e Jeppard o parecem) e com o luto (no fortíssimo e devastador episódio 4).
Essa pegada um tanto mais obscura pode facilmente acabar levando a pessoa espectadora a crer em um final agridoce (com o perdão do trocadilho), ou até mesmo chocante. Não entraremos em detalhes (mesmo porque alguns acontecimentos realmente surpreendem), mas o já conhecido tom leve e aventuresco das duas primeiras temporadas parece ainda ser a escolha feita por Jim Mickle e o casal “Downey Jr” (sim, o Homem de Ferro & esposa) para levar a história de Gus adiante.
Entendam: isso não necessariamente é algo ruim. A proposta casa bem com o carisma do protagonista e demais personagens apresentados, e mesmo que algumas vezes precisemos fazer um esforço para aceitar algumas escolhas narrativas – principalmente nas tramas de ação e conflito físico –, o seriado continua a funcionar até o minuto final. Porém, acima de qualquer acerto ou falha na execução da narrativa, Sweet Tooth se sobressai nos momentos onde aborda assuntos importantíssimos – mesmo que de forma indireta –, como o racismo, a inclusão social (bem presente na segunda temporada), as pautas ambientais e a nocividade dos relacionamentos tóxicos. Nesse ponto, Zhang (Rosalind Chao) é a personificação do extremismo, externando sempre que possível seu preconceito contra os híbridos, tratando-os como animais e propondo que suas crenças acerca da superioridade da raça humana precisam ser impostas nesse mundo caótico – e qualquer semelhança com o aumento de grupos com pensamentos semelhantes em nosso mundo atual (não) é mera coincidência.
Nem tudo são flores
Sweet Tooth tem grandes méritos nessa última temporada, mas algumas falhas de roteiro e de velocidade de execução chegam a incomodar. Mais para o final da série, o protagonista e seus companheiros se embrenham em um lugar traiçoeiro, onde precisam correr para não ficarem presos – ou pior: morrerem. Ainda assim, minutos depois de chegarem a um local seguro, os vilões da história conseguem passar pelas mesmas dificuldades sem aparente sofrimento. Pouco depois, uma cena de ameaça à integridade de Gus poderia se resolver em segundos, mas é arrastada por vários minutos – incluindo cortes para exibir os acontecimentos de outro núcleo – e a resolução acaba não se tornando crível. A impressão que fica é que poderiam ter enxugado a última temporada em menos episódios, mas por contrato precisaram “encher linguiça” para que desse o comprimento esperado pelos executivos – nada que chegue a estragar a experiência, mas fica um certo incômodo.
Resolução
Nessa temporada, a trama parece fugir um pouco do aspecto científico explorado nas duas primeiras temporadas e passa a ter uma linha mais fantasiosa – tanto pelas explicações apresentadas para O Flagelo e o nascimento das crianças híbridas, quanto pela constante citação do “destino” como razão para alguns acontecimentos. O momento que confirma a escolha do enredo acontece quando Gus tenta falar com Singh, chamando-o de “Doutor Singh”, e o homem responde “eu não sou mais um médico”. Essa questão de fé e destino também afeta as linhas de raciocínio de Birdie, Grandão (Nonso Anozie) e Becky(Stefania Owen), transformando o final catártico em um grande “era para ser assim mesmo”.
A conclusão de Sweet Tooth
Sweet Tooth não tenta em momento nenhum enganar seu público: a terceira temporada entrega o que foi proposto desde o início, com boas e bem explicadas amarrações de tramas em sua linha narrativa principal. Mais uma vez, o carisma do protagonista, junto com o maior tempo de tela para Wendy, Becky e uma terceira – e fofa – criança híbrida, traz na maioria do tempo a leveza pela qual a produção ficou conhecida, mesmo que aborde em vários momentos assuntos e ocorridos bem pesados e complexos. Méritos também para a atuação de Kelly Marie Tran como Rosie Zhang, dando vida ao conflito causado pelo relacionamento tóxico dos pais com seus filhos (em mais de uma geração).
Por mais que haja um certo – na falta de uma palavra melhor – desleixo na conclusão do terceiro ato, o final não compromete a boa execução desde a primeira temporada. A questão que fica é: se a terceira temporada traz um crescimento ao protagonista pautado em traumas e caminhos sombrios, será que o final deveria ser tão “doce” assim, ou os roteiristas poderiam ter sido um pouco mais ousados – inclusive com algum sacrifício ou acontecimento chocante?
Independente da questão, Sweet Tooth merece ser lembrado como a série que expôs o comportamento da sociedade perante a uma pandemia, a aceitação de quem é diferente e a necessidade do coletivo em detrimento do particular. Embora tenhamos bons exemplos de humanidade (que estiveram com Gus em vários momentos), fica claro que – na ficção e na vida real – ainda há muito trabalho a ser feito para erradicar pensamentos extremistas e individualistas. As decisões a serem tomadas, contudo, não podem ficar a cargo de preconceitos ou generalizações – o que dificulta uma resolução. É preciso união, caso contrário ficaremos apenas com medo, nos sentindo sozinhos.
Talvez, no fim de tudo, tenhamos que deixar tais temas a cargo da fé – seja na humanidade, no destino ou até mesmo na Mãe Natureza.
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