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Luminária: “Phantastes”, a jornada do herói sem objetivo

Há quinze dias, contei parte da minha experiência ao ler “Phantastes” de George MacDonald, um livro de alta fantansia de 1858. Na primeira discussão eu disse que tive duas grandes impressões do livro, a primeira é sobre a beleza narrativa da história e algumas falhas que atrapalham o fluxo de leitura, assunto discutido na matéria anterior (“Phantastes”, o precursor da fantasia). A segunda impressão irei explanar nesta matéria sobre como é acompanhar a história de um protagonista sem um propósito definido e como essa proposta não funcionou comigo. Então, aproxime-se da Luminária, sente-se confortavelmente e vamos conversar um pouco mais sobre “Phantastes”.

A Jornada do Herói

Antes de conversarmos, vamos entender um pouco sobre um método de escrita conhecido como Jornada do Herói ou Monomito, proposto por Joseph Campbell em sua obra “Um Herói de Mil Faces” de 1949, aprimorada para roteiro por Christopher Vogler em seu guia “A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Novos Escritores”. Essa técnica de storytelling é um modelo narrativo muito utilizado na literatura e na indústria cinematográfica, traçando uma trajetória previsível e com um objetivo específico para o protagonista alcançar.

Afinal, quem não conhece a história de um herói solitário que embarca em uma viagem repentina, a qual promete aventura e perigo. Um mestre orienta o herói a passar por fases de força, caráter e habilidades e que, no final, ele vence o confronto e ganha a recompensa. Familiar não?

A fórmula é dividida em 12 etapas:

1. Mundo comum: É o começo da história. Serve para contextualizar, mostrar o cenário e apresentar o herói e seus problemas.

2. Chamada para aventura: o inesperado acontece, atraindo o herói para a aventura.

3. Recusa do chamado: é o momento de medo e relutância do personagem quanto à missão incumbida.

4. Encontro do mestre: é apresentado um mentor para o herói, que o orientará na sua missão com base em sua grande experiência.

5. O cruzamento do primeiro limiar: o herói esbarra em seus primeiros desafios, marcando uma importante virada psicológica.

6. Testes, aliados e inimigos: ao longo de sua aventura o herói encontra forças positivas e negativas, aliados e inimigos para enfrentar.

7. Aproximação da caverna secreta: aqui é o momento antes do confronto final, o herói retorna aos seus medos e questionamentos iniciais, em uma espécie de conflito interior.

8. Provação: o herói é desafiado por um obstáculo de grande magnitude. É um desafio que ele precisa cumprir para seguir seu destino.

9. Recompensa: depois de superar o obstáculo, o herói atinge seu objetivo e por isso recebe uma recompensa.

10. Estrada de volta: nesta fase, o herói inicia o caminho de volta ao mundo comum, porém agora com uma grande transformação adquirida no processo.

11. Ressurreição: é neste momento que o “inimigo” do herói ressurge, para um novo combate ou conflito ainda maior e com mais coisas em jogo. Nem toda história utiliza essa parte do recurso.

12. Retorno: o herói oficialmente retorna ao mundo comum. Isso permite que o público entenda o significado da jornada e traz uma sensação de conclusão à história.

Empregando esta técnica, os escritores e roteiristas elaboram grandes histórias épicas nas quais o herói tem seu momento de queda e ascensão, a recompensa dele também é transmitida para o leitor, deixando um sentimento de orgulho, superação e missão cumprida. Filmes como “Star Wars”, “Toy Story” e “Homem-Aranha” e animes como “Naruto” e “Jujutsu Kaisen” são exemplos de produções que utilizam este arquetipo, na literatura posso citar “Harry Potter”, “Percy Jackson e os Olimpianos” e “Os Instrumentos Mortais”.

Anodos, o “sem caminhos” e sem propósito

O protagonista do livro chama-se Anodos, que do grego quer dizer “sem caminhos”.  Como eu expliquei na coluna anterior, o autor de “Phantastes” era um pregador cristão, então o livro tem algumas mensagens. No início do livro, descobrimos que o jovem acabou de alcançar a maioridade, o que pode ser uma analogia de uma aventura a qual ele ainda irá explorar: a vida adulta. Alguém “sem caminhos” é uma pessoa sem histórias e sem experiências, os novos trajetos se abrirão com oportunidades para o crescimento pessoal, ou seja, Anodos é um inocente que irá desbravar o novo mundo.

No primeiro capítulo, uma fada promete realizar o desejo dele de conhecer a Terra das Fadas. Se consultarmos o método a Jornada do Herói, vemos a etapa 1 (mundo comum) e 2 (o chamado para a aventura) acontecendo aqui.

Entretanto, a semelhança entre “Phantastes” e a Jornada do Herói acaba aqui, pois George MacDonald não seguiu as demais etapas propostas porque, primeiro, a sua obra possui quase um século de diferença do método de Campbell; segundo, este método não é de aplicação obrigatória em todas as narrativas épicas; e em terceiro lugar, esta nunca foi a intenção de MacDonald. Como expliquei anteriormente, a técnica é uma trajetória previsível com um objetivo determinado, porém a proposta de “Phantastes” vai à contramão desta ideia, afinal estamos lidando com um “herói sem caminhos”.

“[…] — Olhem para ele! Olhem para ele! Ele começou uma história sem início e jamais terá um fim! Hahahah! Olhem para ele. […] capítulo 4 de “Phantastes”, de George MacDonald, editora Principis.

Anodos começa sua aventura em uma terra desconhecida, sozinho, sem um objetivo concreto em mente, sem amizades duradouras, sem um mestre para guia-lo, sem um inimigo principal para enfrentar… De início, é interessante acompanhar essa jornada incerta, pois senti que eu estava explorando o novo mundo junto com o protagonista, mas também me iludi achando que viria alguém para justificar sua estadia naquela terra mística.

Esperei que os possíveis antepassados dele, mencionados no primeiro capítulo, pudessem aparecer com um chamado familiar, mas não aconteceu. Ou que fosse revelar a realeza das fadas e uma possível missão a qual somente ele poderia cumprir, mas não aconteceu. Um possível amor por sua “musa no mármore” e pela qual precisaria lutar até o fim, mas não aconteceu. Um inimigo maior que justificasse os combates menores que ele teve com o Freixo, a Sombra, os gigantes ou a seita, mas não aconteceu.

O rapaz segue seu rumo sempre para o leste, que nem ele mesmo sabe o porquê desta direção, depois muda o objetivo para encontrar o palácio real, aí se vê atraído pela “fada do mármore” e corre para encontrá-la, decide depois virar um escudeiro… São várias pequenas aventuras sucedidas e confusas, as quais fazem o leitor perguntar-se “para onde a história está se encaminhando?” e não há uma resposta, é frustrante!  

Para não ser tão injusta, direi que há uma fada, descrita como uma velha com olhos jovens, que revela que aguardou a vinda de um herói, o Anodos, com o objetivo de unir forças com dois príncipes para derrotar alguns gigantes. Quando cheguei nesse ponto da história, pensei “a jornada até aqui trouxe ele para um objetivo maior, ele apenas não sabia até então”. E quando o Anodos enfrenta esse inimigo pelo qual estava destinado e vencer, achando que se tratava do ápice da história do herói e que sua jornada finalmente fosse finalizar… mas não! Após a batalha, o jovem ainda continuou seu caminho e seu aprendizado, sem orientação ou destino algum.

É um sentimento revoltante que tal narrativa provoca durante a leitura, não há um estímulo de recompensa para o leitor por tê-lo acompanhado durante todo o livro, artifício n° 12 da Jornada do Herói. A sucessão de acontecimentos vai surgindo para ele conforme segue um caminho que não sabe onde vai dar, com quem vai encontrar e o porquê está seguindo.

É por isso que ler “Phantastes” me frustrou tanto, é cansativo acompanhar alguém sem rumo, uma história sem motivos definidos, uma sucessão de aventuras e personagens sem um propósito único, uma narrativa épica na qual não há o ápice do herói. Eu entendo que isso foi o objetivo do autor, mas não quer dizer que a minha experiência de leitura não tenha sido ruim.

Talvez, se em sua época, MacDonald tivesse empregado o método da Jornada do Herói e tivesse traçado uma missão mais bem definida para seu protagonista, sem perder o intuito de crescimento pessoal, a leitura de “Phantastes” poderia ser mais prazerosa e teria cativado muito mais o leitor. 

Luminária é a coluna literária na qual conversaremos sobre livros a cada quinze dias. Para mais conteúdos literários, acesse o portal.

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